Autotutela, shadowbanning e o controle da liberdade de expressão em plataformas digitais.

Recente decisão pode ser encarada como uma das mais importantes do STJ sobre  autotutela no ambiente digital (Recurso Especial 2139749 – SP).

O caso diz respeito ao seguinte cenário: um médico neurologista publicou vídeos no Youtube sobre a pandemia do coronavírus. Esse vídeos foram removidos pela plataforma, sob a alegação de violação da política de spam, prática enganosa e golpe. Ainda, também foi bloqueada a  função live, o que impediria a realização de vídeos ao vivo.

Em sua defesa, o médico sustentou que a liberdade de expressão deve prevalecer sobre a livre iniciativa e que a plataforma teria agido com abuso comercial e imposição de meios coercitivos e desleais no fornecimento do serviço ao bloquear a função live, cancelar os 7.900  inscritos do canal e utilizar algoritmo que limita o tráfego e a divulgação dos vídeos (shadowbanning).

Ao analisar o caso, o STJ fixou duas diretrizes importantes. Sem usar o termo “autotutela”, mas se referindo à possibilidade de proteção unilateral com base nos termos de uso, reputou lícita a medida imposta ao médico. Os principais argumentos são os seguintes:

1- O artigo 19 do Marco Civil da Internet não veda que o provedor exerça autotutela com base nos termos de uso. O que se prevê é a sua responsabilização por eventual ilícito nessa conduta ou em desobediência à decisão judicial. A tutela unilateral, nesses casos, vem cercada de funções como contenção das fake news e a redução da desinformação no espaço virtual.

Um trecho do voto do relator é importante para compreender o alcance dessa conclusão:

“Dado esse cenário, verifica-se que as plataformas têm todo o incentivo para  cumprir não apenas a lei, mas, fundamentalmente, os seus próprios termos de uso (admitindo-se que eles estão em conformidade com o ordenamento jurídico), objetivando evitar, mitigar ou minimizar eventuais contestações judiciais ou mesmo extrajudiciais.

Assim, é legítimo que um provedor de aplicação de internet, mesmo sem  ordem judicial, retire de sua plataforma determinado conteúdo (texto, mensagem, vídeo, desenho etc.) quando este violar a lei ou seus termos de uso, exercendo uma espécie de autorregulação regulada: autorregulação ao observar suas próprias diretrizes de uso, regulada pelo Poder Judiciário nos casos de excessos e ilegalidades porventura praticados.”

2 – Não há violação ao devido processo legal se a plataforma notificou e permitiu o contraditório com o usuário. Essa linha segue um posicionamento relevante, sustentado por parcela minoritária da doutrina (na qual me incluo), de que há plena compatibilidade entre autotutela e processualidade.

Eis a passagem relevante do julgado nesse sentido:

“No presente caso, no entanto, verifica-se que não houve violação dos  direitos fundamentais do recorrente quanto ao direito de se manifestar, tendo em vista que a plataforma o notificou acerca da necessidade de reavaliar e retirar os conteúdos tidos como irregulares, franqueando-lhe o direito ao contraditório – fatos esses incontroversos, reconhecidos tanto por ele quanto pelo acórdão recorrido.”

Por fim, é importante ver como a prática cada vez maior de autotutela já se sente na jurisprudência. Os casos envolvendo a tutela unilateral no no ambiente tecnológico deverão passar, em breve, pela análise do STJ e espera-se que o raciocínio empregado no julgado se reflita em outras oportunidades.

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