Em fevereiro deste ano, a Associação dos Magistrados Brasileiros – AMB propôs a Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 7601 para impugnar os artigos 6º, 9º e 10 da Lei 14.711/2023, denominada de Marco Legal das Garantias. O presente texto não discutirá a pertinência temática para fundamentar a legitimidade ativa dessa entidade de classe. Isso comportaria análise específica. Neste momento, avaliam-se, do ponto de vista processual, as razões das inconstitucionalidades arguidas.
O artigo 6º introduz os artigos 8º-B, 8º-C, 8º-D e 8º-E no Decreto-Lei n. 911/1969. Esses dispositivos disciplinam a execução extrajudicial da alienação fiduciária sobre bens móveis. Cuidam do processo cartorial para consolidação da propriedade, notificação e ciência do devedor e cobrança da dívida excedente. Foram confiados ao credor fiduciante poderes específicos para localizar, por si ou por empresas especializadas, e alienar o bem móvel dado em garantia. O que até então era necessariamente feito em juízo, passou a ser facultativo, com a possibilidade de adoção da fase extrajudicial.
Os artigos 9º e 10 tratam, respectivamente, da execução extrajudicial dos créditos garantidos por hipoteca e da execução extrajudicial dessa garantia em concurso de credores. Prevê-se a alienação em leilão do imóvel hipotecado, assegurando-se a cientificação do devedor, a purgação da mora ou outras reações atinentes à existência, validade e eficácia da obrigação, dentre outros aspectos.
Os questionamentos de inconstitucionalidade residem nos seguintes argumentos, em parte coincidentes para todos os dispositivos atacados: (i) ofensa ao direito à intimidade do devedor (art. 5º, X e XI da CF/88), pois haveria o seu “monitoramento” para localização do bem alienado fiduciariamente ou a suposta “investigação” de sua vida privada; (ii) ofensa ao princípio da reserva de jurisdição (art. 5º, XXXV da CF/88), pois a expropriação só poderia ser realizada pelo Poder Judiciário, com a observância do devido processo legal; (iii) ofensa ao devido processo legal (art. 5º, LV da CF/88), porque a execução extrajudicial ofende o direito de propriedade.
Esses argumentos não são novos: são resistências frequentes às execuções extrajudiciais, especialmente aquelas configuradas como autotutela executiva. Ambas as inovações trazidas pela Lei 14.711/2023 – execução extrajudicial em alienação fiduciária de bem móvel e execução extrajudicial de hipoteca – seguem, a meu ver, essa configuração, ao menos no plano da satisfação mediante alienação por iniciativa do credor.
Para o debate sobre a autossatisfação de interesses prestacionais avançar no Brasil, é necessário superar alguns dogmas que ainda recaem sobre a autotutela. Pretendo discorrer sobre alguns deles, que servem não só para os casos disciplinados pelo Marco Legal das Garantias, mas também para outras hipóteses.
O primeiro é a desconfiança sobre a autotutela privada. É antiga a premissa de associá-la com a violência, a sobreposição do mais forte sobre o mais fraco ou uma concepção marginalizada e ilícita de tutela de interesses. Com base nisso, presume-se que execução de prestações entre particulares só poderia ser realizada com a intervenção do Poder Judiciário.
O ponto central dessas concepções está em acolher discurso do início do século XX, segundo o qual a jurisdição existe para substituir a autotutela. Embora fortemente encampado, a autotutela, regular e licitamente utilizada, nunca deixou de estar presente na sociedade. Basta ver os numerosos casos de retenção, compensação ou proteção da posse praticados rotineiramente por indivíduos ou empresas, além das diversas disposições contratuais criando poderes específicos de tutela unilateral aos contratantes. Para usar exemplos mais atuais, a ampla digitalização da sociedade veio acompanhada do uso igualmente amplo de autotutela, como se verifica com a exclusão de perfis falsos em redes sociais e bloqueio de contas ou desmonetização unilaterais por plataformas.
De outro lado, sempre se tratou com naturalidade a autoexecutoriedade dos atos administrativos, muitos deles com a finalidade de tutelar interesses lesados ou ameaçados mediante atos de execução. O fechamento de estabelecimentos em desconformidade com regras de saúde e segurança, a apreensão de mercadorias falsificadas, dentre outras condutas executivas extrajudiciais, sempre foram vistas como uma prerrogativa administrativa.
Por isso, o problema não parece estar na realização da execução fora do Poder Judiciário, mas nos seus limites para o interessado agir.
No caso da alienação fiduciária de bem móvel, há um adendo. Além de a lei autorizar as iniciativas privadas de localização do bem, há, claramente, uma divisão de tarefas com o Estado para a apreensão: além da comunicação aos órgãos registrais para indisponibilidade do bem, o que poderá acarretar a apreensão pela autoridade pública, haverá a comunicação ao oficial da serventia extrajudicial, também competente para a apreensão.
Como localizar o bem, quais técnicas poderão ser empregadas ou quais meios poderão ser utilizados são respostas a serem dadas pela jurisprudência com o controle desses atos. Nesse âmbito, é útil o seguinte paralelo: os poderes conferidos pela lei brasileira ao particular foram menos incisivos se comparados com os poderes concedidos pela self-help repossession tratada pelas sections 9-609 e 9-610 do Uniform Commercial Code estadunidense, os quais há décadas são interpretados pelos tribunais para impor restrições como impossibilidade de lesão do devedor, de invasão de suas propriedade, de causar danos a outros bens etc. A comparação é oportuna porque esse padrão de retomada do bem pelo credor vem sendo adotado, em intensidades distintas, por muitos países, inclusive o Brasil.
Assim, o exercício regular da autotutela não produz um antagonismo com a jurisdição estatal, mas relações de coordenação, complementariedade e controle.
O segundo dogma é ignorar o alcance extrajudicial do devido processo legal. Não me refiro apenas ao devido processo legal nas relações privadas, mas à confusão de que expropriação patrimonial só poderia ser realizada em processo jurisdicional estatal. Como manifestação concreta do devido processo, a processualidade serve para restringir o arbítrio do Estado e para constranger o arbítrio privado, especialmente diante de tutela unilateral de interesses.
O ideal pretendido com o devido processo legal não é impedir a solução extrajudicial de conflitos; é impor condições específicas e adaptáveis de conformação da proteção dos direitos. Não há apenas um modelo de solução de conflitos apto a consagrar essa garantia, mas uma relação de adaptação diante dos meios de solução de controvérsias. Daí porque é correto dizer que, no Estado de Direito, diversas formas de autotutela, pública ou privada, devem ser processualizadas.
O julgamento dos RE 627.106 (tema 249) e RE 860.631 (tema 982) são importantes nesse debate. O STF reconheceu a adaptabilidade de regras processuais que efetivam garantias constitucionais como contraditório, ampla reação do devedor, competência pré-determinada e trâmite perante órgão notarial, o que subtrai da pretensão do credor a configuração de “ilegítima forma de autotutela”.[1]
De acordo com esse referencial, a constitucionalidade da execução extrajudicial caracterizada como autotutela executiva, que, estruturalmente, desenvolve-se à semelhança do previsto pela Lei 14.711/2023, tende a confirmar não só a manutenção dos dispositivos questionados pela ADI, mas servir de orientação para a concretização do devido processo legal na desjudicialização da execução civil.